sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Morte ao museu


Se o tempo perdoasse meus deslizes,
não seria eu agora uma sala de exposições...
A sala, deveria, pelo tempo,
carregar o pó de toda uma lembrança
deixada amontoada e solitária.
No entanto, a sala, sempre limpa,
revela minhas constantes visitas e apreço pelo entulho.
Cada tijolo da casa tombada
é minuciosamente ilustrado com o óleo agridoce, que vaza do meu olhar e é semeado por meus dedos.

Minhas reflexões tentam levantar a casa,
entretanto, a equação é indecifrável.

Assim, como se todos os dias fossem de finados,
eu visito a sala velha, carcomida,
enfeitada de flores, limpa e angustiosa.

Tudo em vão.
O tempo não me perdoa
e fez de mim uma escrava eterna de suas brincadeiras de esconder e achar.

Esconde as chaves
e acha em mim apenas
a sala velha com poesias mortas
porém, limpas dentro.
Joyce Rodrigues

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Pacto comigo e só


Quero fazer um pacto com o diabo.
Quero meu coração de volta.
Quero de volta a alma que Deus roubou de mim e estocou no quartinho de entulhos.
Quero de volta o sangue em minhas veias...
Mesmo que me traia.
Mesmo que maligno.
Quero o vermelho da minha vida mesmo que para sujar-me,
mesmo que apenas encha o poço para o afogamento.
Morrer afogada em mim mesma?
Narciso que não me venha cobrar direitos autorais...


Joyce Rodrigues

Cinco sentidos orais


Me acaricia com as palavras porque as mãos não aprenderam a tocar.
Me observa com a memória porque os olhos cegaram-se ao olhar.
Me beija a boca como a testa por querer beijar o coração e isso não se pode dar...

Carinhos com/tensão entre.

Lambidas secas, sem saliva.
Entrega sem mandíbula, sem glândulas, sem química,
não palpável.
Os caninos aprenderam a morder mas não digerem a mulher,
ela volta pelo esôfago
biles pela boca -
a mulher-nada na indigestão.
fuga -
Fuja mulher! (o anjinho da guarda acima do ombro direito sussurra em seu ouvido)
- Acaricia com/tensão entre (palpita a figura oposta, no ombro esquerdo)
Vômito provocado, escapa pela tangente.
Ela esvaiu-se no discurso jorrado do homem...
Toma-se um banho...
“água lava tudo”.

Joyce Rodrigues

Debruçada em Billie Holiday


Debruçada no piano
canto os males arrebatados da vida,
derreto os enigmas indecifráveis,
preparo uma poção de amor etílico
e embriago o sexo quando ainda imaginação.
Sinto-me voltando para casa...

Debruçada no piano
entreguei meu corpo a aquele homem,
cujo charme transbordava em cheiro
e eu em cio, deixei levar-me as virtudes e tudo mais o que quis.
Agora canto os prazeres de sua falta
bebendo o suco de nossa canção.

Debruçada no piano conto a todos as loucuras do nosso amor e das vezes que desvairei de tanta paixão.
Sorrio e disfarço as feridas incuráveis
das pancadas que levei daquele homem,
o qual entreguei a mocidade, a inocência e a capacidade de sentir profundamente a presença de outro qualquer...

Debruçada no piano,
conto as manchas que as lágrimas desbotaram em sua cauda,
que derramei lamentando o que ficou no vazio...
e mesmo assim
sinto-me voltando para casa...
Joyce Rodrigues

Castelo de fumaça


Esconderijo do corpo para dentro dele mesmo.
Passos curtos por estrada longa.
Olhos fixados a terra suja abaixo dos pés
(Para o corpo ela corre mais que o tempo)
Mãos no bolso.
Adeus não há.
Faltam as ilusões no dicionário de minha língua.
Para onde foram as mentiras?
Por acaso escondidas por trás dos muros do homem, ou tomada só para si, para o livro das "verdades"?
São muitas "verdades" para respirar
os pulmões não dão conta...
preciso da nuvem anfetamínica para contaminar essa bondade...
preciso das mentiras para respirar,
muitas verdades poluem a ilusão, antítese da vida...
Imã da terra, pés de ferro,
livro aberto sobre o rosto,
janelas da alma de cortinas fechadas,
o objetivo é dormir,
portanto peguem as pedras que eu estou passando.
Você nunca esteve deitado em sua cama fumando um cigarro e isso é muito estranho pra mim...

Joyce Rodrigues

domingo, 10 de agosto de 2008

A caixa de Pandora


Olá! Como tem passado? Mais um atropela a vida de Pandora, com uma pergunta sem interesse pela reposta. Propriamente: vou bem! E você? Tudo ótimo! Que bom! E lá se vai outro... Pandora prossegue, entretanto, muito interessada pela resposta. Caminha pensando nas centenas de listinhas de auto-ajuda que já fez em sua vida. O que não quer ser, o que quer, defeitos, qualidades, promiscuidades, bondades, com quantos já fez amor, com quantos gostaria de fazer, dos quais se arrepende, quantos livros já leu, quantos prestaram, quantos filmes foram vistos, quais ainda precisam ser, lista dos amigos, de convidados, de supermercado, de Natal... Pandora começa a sentir-se entediada tanto quanto este parágrafo.
Resolve um dia ser sincera. Um dia. Olá! Como tem passado? Estava em alta velocidade. Impropriamente: entediada! E gostaria de falar sobre isso. Podemos nos sentar, tomar um café, conversar um pouco? Infelizmente tenho horário e já estou atrasada. Seria ótimo num outro dia, beijos. Esta tomará multa, conclui Pandora, que volta a pensar sobre seu tédio. Decide ligar para uns amigos. Oi! E aí? Aluguei uns filmes, quer ver comigo? Podemos aproveitar e tomar um café, colocar o papo em dia... ando precisando de uma conversa... - Ótimo! Que horas? Quando sair do trabalho vou direto para sua casa. Fechado, aguardo você. As horas, protetoras do destino, passaram cumprindo sua defesa e Pandora assistiu seus filmes só. Que vontade de tomar um café! O mundo anda ocupado demais para as sutilezas de uma mulher! Calúnia? Não!! O mundo anda ocupado demais para as sutilezas de uma mulher...
Alô, como vai? Pandora percebe que nenhum interesse, mesmo de sua parte, existe por essa resposta. Rapidamente: quer sair comigo? Tomar um café, conversar um pouco? Claro! Que horas? Agora não posso saber, me liga mais tarde e marcamos. Ok, até mais. Um abraço. O número que você ligou encontra-se desligado ou fora da área de cobertura. Por favor tente mais tarde. Tarde demais!! Esbraveja a mulher e suas sutilezas. Mas o mundo anda ocupado demais para as bravuras de uma mulher... O mundo anda cansado para gentileza e inteligência; mais fácil os manuais, dublagens e traduções. Cada vez mais disposto a automatização, a significância do insignificante – (pelo menos para mim)- que não me sinto tomado por esta Terra. Não há seres humanos, há urubus em lixões atrás de carniça. Como Pandora pôde imaginar?! Um ser humano de carne, coração e cérebro a passear pelas rodovias desta Terra! A mulher que esbraveja sutilezas enganou-se, obviamente.
Certo dia, Pandora teve um encontro inesperado! Poderia finalmente dividir seus pensamentos, dúvidas e convicções. Falar o quanto quisesse, gritar, xingar, elogiar-se, contar mentiras, ser inocente, indefesa, sonsa, puta, advogada, Deus! Neste amigo ela poderia confiar! Via-se num tapete mágico de Aladim sobrevoando suas conversas engasgadas. Entrou por um túnel semelhante a um grande ouvido. Deslizava e ria convulsivamente: caixa timpânica, martelo, bigorna, estribo, tímpano, janela redonda, trompa de eustáquio, labirinto... Pandora boba e sua descoberta. Nada poderia se comparar a leveza, a paz, do infinito papel que estendido estava diante de sua língua. Área de broca. Área de Wernicke.
Dava bailes e saraus todos os dias! Papel, caneta e punhos, todos dançavam coordenadamente a música de seus poemas...
Olá! Como vai? Eu poderia falar com Pandora? Pandora se mudou. Não mora mais aqui. E para onde ela foi? Quando vai voltar? Por trás daquela porta está o corpo inepto de Pandora, dentro do papel que lá está, reside a alma de uma mulher e suas incompreensíveis sutilezas.

Joyce Rodrigues.

Quando a corda partir


Ela busca dentro do seu seio revirado
respostas para as perguntas do seu eu comovido.
Vive a remexer as entranhas dos umbrais
a fim de que se migrem do seio revirado para a mente
a simplicidade das carícias que vive seu corpo.

Carícias, incógnitas...
Acaricia e espanca
Um jogo de claro e escuro.
Ela não suporta mais se perder...

Prossegue naqueles trilhos
que circulam em seus seios roxo-magoado.
Na garganta, a quentura de uma língua presa.
Há um trava-línguas que une a garganta aos seios revirados.
A rata rumina as razões da rainha.
Tranca os lábios.
Portais não há.
Ela, a rata, não cospe nem engole
Deixa roçar no palato da rainha.
Joyce Rodrigues

Eclipse do azar


Me pega seu cigarro
me traga toda de uma só vez
joga fora cospe bem longe.

... fez minha pessoinha chorar...

O tilintar daquelas chaves fez-me lembrar ser arremessada fora.
E eu ia imaginar?
Dentro do ônibus
o tilintar daquelas chaves soprar-me tão longe, tão no passado... fazendo peitinho de pessoinha vibrar com o tilintar das chaves lembrando sua presença imponente perante pessoinha...

E eu ia pensar?
Um dia de sol peito rachado feito terra de sertão.
Dia de sorrir, entretanto momento de secar.

Pegou-me de surpresa...
o bater três vezes daquela chave naquele instante me fazendo de novo toda seu cigarro tragada de uma só vez tremida de corpo inteiro queimadura de terceiro grau nessa pessoinha em que fui arremessada ao tilintar daquelas chaves...
Joyce Rodrigues

Estátua de pele


Quatro paredes com pessoas dentro.
Reboco, entulho, concreto
Pessoas com paredes dentro.
Vira-se, revira-se
segue-se a receita
um pouco de água para não ser tão duro
para não ser seco
um pouco de amor para não ser pobre.

Desanda.

Reforma.

Empilha-se os tijolos
aos poucos se ergue o nariz
pessoas em retalhos de massa
pessoas em bloco
pessoas de barro.

Cai a chuva
Revira-se se vira...
tijolos no estômago
emboço para disfarçar os pedaços
- pessoas de tijolos com um pouco de amor e emboço para não ficar pobre, disfarça o tijolo dentro -
32 dentes, alguns órgãos, quatro litros de sangue, um coração para gastar energia
segue-se a receita
pessoa pronta para morar a parede dentro

mão-de-obra

faltam os detalhes

falta a pessoa

Um primor de cômodo
segue-se a receita...
incômodos dentro de pessoas dentro de paredes
deve ser a liga...
Vira-se revira-se...
demolição do primor
poeira poeira
obra prima vira lápide
seis paredes com pessoa dentro.
Joyce Rodrigues

Kamikaze


Saindo desse mundo fértil para o descampado do meu plantio.
Eu planto o que já foi morto a fim de que brote o além.
Navego nessa doentia estrada
remota, sugadora, onírica, nociva...

Passos-bomba, eu já explodi tudo!

Traço outro plano
deixo pílulas tarja preta como rastro.
Vi um passarinho sorrir pra mim hoje
depois percebi que ele tinha engolido uma pílula...

Ninguém ri são no meu mundo.

Alguém no meu rastro...
Navego pelos vermes brotados, estou seguro ali.
Mais um caiu na emboscada
Sorri pra mim, ele está anestesiado...

Ninguém não anestesiado sorri pra mim no meu mundo.

Eu salto do barco
Passos-bomba eu explodo tudo!
Peguei os restos e pus numa moldura no meu barco.
Fiquei lá esperando o próximo...

Sorrisos-bomba
só tem sorrisos-bomba no meu mundo...
Joyce Rodrigues

Cegueira da Alma


Posso dizer a você que não existe.
A você que não lê este poema,
as formas que se modularam o útero que vivo,
o sabor rascante do líquido que sustenta meu infinito,
a cor encardida do travesseiro que tortura minha cabeça pesada,
o odor rosa negro exalado de minha boca gritante.

Posso dizer a você , um você que tem ouvido,
mas não capacidade de escutar este poema;
quantos paraísos capinei para ser admitida no inferno,
quantas nuvens eu chovi para desafogar o ódio,
quantas vezes fingi que dormia para acreditar ser pesadelo.

Posso dizer a você, que possui olhos mas não pode enxergar este poema,
porque não possui meios de relacionar-se com um espectro.
A este você não posso dizer nada.
A este você o que sai desparafusado é bagunça.
No entanto, é a oportunidade de construir.
Mas sem sentidos para poema do livro fez-se pouco
sem sentidos para poema o livro fez-se torto
sem poema para os sentidos a vida fez-se morte.

Quantas catacumbas arrombei para encontrar uma palavra perdida!
Mas agora a palavra encontra-se sem casa...
porque do livro fez-se mau sentido e não tocado.
A rainha palavra mal entendida foi ignorada.
Nada adiantou
mãos calejadas
testa suada
saliva pingava
poema sem teto.

Para que você, olhos, ouvidos, grunhidos.
Correntes, reflexo, óculos de grau e ainda miopia.
Para que o poema se ainda miopia?
Joyce Rodrigues

Presente de Grego


Desde que fomos homens fala-se de um livre-arbítrio,
mas nunca em só um homem tantas bifurcações.
Punha-me a trilhar a vida como quem a vive
mas para isso quantas vezes não tive que assassiná-la.

Viva vida pós vida!

Podia eu estar sozinho, quieto,
de preto numa parede preta
que lá estava ela;
Na minha frente uma bifurcação
Numa plaquinha escrito livre-arbítrio.
Olho para um lado; névoa rubra e uma quentura espetava-me a alma,
sendo inevitável não recuar...
Olho para o outro; brancura daltônica e sombria,
rodeava-me de rostos santificados e punidores,
sendo inevitável não recuar...

Sem saída, me encontrava no vão central da ponte Rio/Niterói.
Não sentia fogo nem brancura
e sim uma brisa que parecia ninar-me ao colo...
Não fui eu quem escolheu,
mas pulei naquele concreto de água abaixo.

Viva vida pós vida!

Acordei sozinho, quieto
de preto numa parede preta...
Um minuto após estava lá, a plaquinha escrito livre-arbítrio a me encarar.
E...
não fui eu quem escolheu,
o tapete carrasco sugava-me
eu pulava!

Viva vida pós vida!

Punha-me a trilhar a vida como quem a vive...
Discurso errôneo num pano de fundo errôneo...

Uma reciclagem a vida...
Pessoas pequenas que se tornam sentimentos negros que se tornam más escolhas que se tornam tapetes de pedra, que se tornam pessoas pequenas que se tornam sentimentos negros que se tornam más escolhas, que se tornam tapetes de pedra...

Joyce Rodrigues